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Coronalive-2020

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Fazendo uma analogia com a música O dia em que a terra parou do maluco beleza, Raul Seixas (1945-1989), penso que o ano de 2020 poderia ser o ano em que a terra parou. Ou, quem sabe, deveria ter parado. Com certeza que muita coisa parou. Muitas atividades foram interrompidas e outras tantas se reorganizaram. Algumas formas de viver foram, temporariamente, canceladas. Outras tantas nunca mais voltarão.

No entanto, tenho observado que algumas coisas e principalmente alguns comportamentos, ao contrário de cessarem, de diminuírem o ritmo, de se readequarem aos novos tempos se aceleraram. Adotaram um ritmo ainda mais frenético, e adoecido, do que já tinham tendo. Vamos a um exemplo. Alguém imaginou ou conseguiria imaginar antes dessa pandemia a quantidade de lives para as quais seria convidado(a)? A cada sinal do WhatsApp é mais um convite que chega. Ora para participar, ora para coordenar, ora para fazer parte como expositor(a). Parece que junto com o coronavírus se espalhou outra praga tão ou mais perigosa: o Coronalive-2020. É live ensinando como fazer live.

É live ensinando a etiqueta de como se comportar numa live. É live orientando como dizer não a uma live. Tem até live sobre live. Tem gente enlouquecendo seus terapeutas com suas neurolives. Uma amiga terapeuta "segredou" que as lives estão povoando os sonhos - ou pesadelos - de seus(as) pacientes.

Atenção, os junguianos podem estar voltando. Lembrei-me de uma pedagógica passagem contada pelo médico e psicanalista quaraiense Cyro Martins (1908-1995), patrono da Cadeira de número 21 que ocupo na Academia Santa-Mariense de Letras. Contava Cyro Martins que uma paciente sua sempre que se acomodava no divã para a sessão de análise reclamava que ratos a mordiscavam nas costas. Ele deu alta à paciente depois de 12 anos de tratamento sem nunca conseguir descobrir qual a origem misteriosa daquela sua queixa.

Vários anos depois, já instalado em imóvel próprio, Cyro encontrou o dono da sala que alugava para atender seus pacientes. Foram tomar um café e o dono do imóvel lhe confidenciou que ao fazer uma reforma na sala, e trocar os móveis, descobriu que no antigo sofá, que servia de divã, habitavam uma verdadeira multidão de ratos. Cyro saiu andando pela rua e matutando. Os ratos existiam, eram reais. Não eram nenhum trauma psíquico de sua paciente. Por onde ela andaria agora? Teria se livrado dos ratos?

Penso que logo surgirão especialistas em tratar os(as) livedependentes que, pelo andar das lives, serão centenas, milhares, milhões talvez. Os profissionais de saúde e os pesquisadores(as) alertam que a pandemia da Covid-19 deixará uma gama enorme de sequelas nas pessoas que adoeceram e que se recuperaram. Algumas levarão muito tempo para serem curadas. Outras nunca. E a pandemia da Coronalive-2020 que sequelas deixará em nós? Assim como as consequências da Covid-19 algumas já se conhece, outras ainda não. Uma coisa, no entanto, é certa. Aprendemos muito pouco com essa pandemia. Particularmente no que se refere à necessidade de parar e refletir sobre o modo como estamos vivendo nossa vida. Com certeza que muitas pessoas não puderam parar. O mundo precisava que elas continuassem fazendo o que faziam. A elas devemos as maiores reverências, respeito e gratidão.

Agora, para aqueles(as) que poderiam ter aproveitado essa pandemia para parar e repensar seu modo de viver e perderam a oportunidade, sinto dizer: a próxima oportunidade pode não vir. Ainda há tempo. Parem tudo o que for possível. Mas por onde começar a parar? Sugiro pelas lives. Assim como os ratos da paciente de Cyro Martins, as lives existem e estão atormentando muita gente! Eu não estou aguentando mais tanta live. E você?

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